sábado, 13 de maio de 2017

Texto inédito de Albert Camus, distribuído por sua filha Catherine Camus

28.04.2017, Albert Camus, por Catherine Camus




No dia 28 de abril de 2017, Catherine Camus, a filha de Albert Camus, entregou a Axel Kahn um texto praticamente inédito de seu pai. É um texto magnífico que anuncia, é claro, a publicação do “Homem Revoltado”, em 1951.


 Tradução de Ahut Wató





Sim, é verdade que vivemos sem porvir e que o mundo de hoje não nos promete nada mais que a morte ou silêncio, a guerra ou o terror. Mas também é verdade que não podemos suportar tal mundo porque sabemos que o homem é uma longa criação e que tudo o que vale a pena ser vivido - amor, Inteligência, beleza- demanda tempo e maturidade.

E se não podemos suportar tal mundo, devemos denunciá-lo. E, precisamente, a primeira coisa a ser feita é lançar um grito de revolta. Pois pelo menos metade do terror e da fatalidade é feita da inércia e da fatiga de indivíduos frente a princípios estúpidos ou más ações com as quais continuam a envenenar o mundo.  

A tentação mais forte do homem é a inércia. E por o mundo não mais estar povoado pelo grito das vitimas, muitos podem pensar que ele continuará desse jeito durante mais algumas gerações. E continuará, com efeito, mas entre prisões e grilhões. Por ser mais fácil fazer seu trabalho quotidiano e aguardar numa paz cega que a morte chegue um dia, as pessoas creem que já fazem o suficiente pelo bem do homem, não matando diretamente.


Mas, na verdade, nenhum homem pode morrer em paz se ele não fez tudo para que os outros vivam e se ele não buscou ou disse qual o caminho de uma morte apaziguada. E outros ainda, que não desejam pensar demasiado na miséria humana, preferem dela falar em termos gerais e dizer que esta crise do homem é a de sempre. Mas esta não é uma sabedoria para o prisioneiro ou para o condenado. E, na verdade, nós continuamos presos, aguardando as palavras de esperança.

As palavras de esperança são a coragem, a palavra clara e a amizade. Que um só homem possa considerar hoje uma nova guerra sem o tremor da indignação e a guerra se tornará possível. Que um só homem possa justificar os princípios que conduzem à guerra e ao terror e haverá guerra e terror. É preciso pois que digamos claramente que vivemos no terror porque vivemos segundo o poder e que só sairemos do terror quando tivermos substituído os valores do poder pelos valores do exemplo.

Há terror porque há pessoas que creem que nada tem sentido ou que só o êxito histórico tem algum. Há terror porque os valores humanos foram substituídos por aqueles do desprezo e da eficácia, a vontade de liberdade, pela vontade de dominação. Não mais se tem razão por ter ao seu lado a justiça e a generosidade. Tem-se razão por ter tido êxito. E mais se tem êxito, mais se tem razão. Em rigor, isso é a justificação do assassinato.

Hoje em dia, todo mundo quer ter êxito, pelo dinheiro ou pelo jogo. Todo mundo quer triunfar. As nações não desejam o sucesso por terem razão, mas elas querem o sucesso para ter enfim razão. Nenhuma delas quer mais escutar a outra. Não há mais diálogo possível num universo em que todo mundo é surdo. Amanhã, só haverá o monólogo do vencedor e o silêncio do escravo. É por isso que os homens têm razão de ter medo, porque num mundo como esse, é sempre por acaso ou por uma benevolência arbitrária que suas vidas ou as vidas de seus filhos são poupadas. E eles têm razão também de ter vergonha, porque aqueles que vivem em tal mundo sem condená-lo com todas as suas forças (ou seja, quase todos os homens) são, à sua maneira, tão assassinos quanto os outros.

Só há um problema hoje em dia, o problema do assassinato; todas as nossas querelas são vãs. Uma única coisa importa: a paz. Os amos do mundo são hoje incapazes de garanti-la, porque seus princípios são falsos e criminosos. Que pelo menos, e em todos os países, aqueles que recusam o assassinato se despertem, denunciem os falsos princípios e comecem, por sua própria conta a reflexão, o diálogo, a atitude exemplar  que demonstrarão, pelo menos, que a História é feita para o homem e não o contrário. Aqueles que não querem matar devem falar, e dizer apenas uma só coisa, mas dizê-la sem trégua, como uma testemunha, como mil testemunhas que não descansarão até que o assassinato seja definitivamente repelido da face da terra.

Albert Camus



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