quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Mudança geoestratégica: Síria, Ucrânia e o G20

9/9/2016, Conflicts Forum, Comentário semanal (2/9/2016)

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


A evidência que anuncia mudança imensa é, não raras vezes, algo aparentemente insignificante ou pouco significativo, considerado por si só. O peso de uma ampla mudança geoestratégica foi-se acumulando gradualmente, como se viu, in potentia, até que, de repente, um pequeno evento disparou a metamorfose e a mudança apareceu inactus (na terminologia medieval). 

Hasakeh é uma pequena cidade de cerca de 200 mil almas, no nordeste predominantemente curdo da Síria. Vive longe das facas e cimitarras do ISIS, e há muito tempo abriga um posto do Exército Árabe Sírio que sempre viveu ali, entre curdos e outras muitas etnias que constituem aquela cidade. Na verdade, o posto do exército tem, como principal ocupação, proteger as minorias contra qualquer excesso autoritário dos curdos.

Então, sem mais nem menos, saído do nada, há um incidente: a polícia curda prende alguns dos soldados daquela guarnição do exército e respectivas famílias. Há notícias de mortes. A partir daqui os detalhes são nebulosos, mas, em resumo, as coisas esquentam, até que o YPG (a milícia armada curda que, hoje, conta com apoio dos EUA) põe-se a bombardear a base do exército sírio com artilharia, e vice versa. Sintetizando, a Força Aérea Síria intervém para proteger a base. Até aí nada de muito extraordinário – exceto que o ataque, pelo YPG, contra o exército sírio, é muito estranho.

Praticamente sempre, o YPG e o Exército Árabe Sírio trabalharam amistosamente e coordenadamente. Então, subitamente, tudo muda assim tão inesperadamente? O Departamento de Estado dos EUA fica agitadíssimo e põe-se a gritar aos quatro ventos (pelas manchetes dos jornais que estão a serviço dos norte-americanos) que há Forças Especiais dos EUA em Hasekeh; e dispara foguetes de fogo verbal contra Damasco, 'avisando' que novos ataques serão respondidos pela Força Aérea dos EUA (tradução: aviões sírios poderão ser abatidos).

Tudo aí, desde o início, pareceu 'exagerado', 'além da conta'. E, afinal de contas, que diabos faziam Forças Especiais dos EUA em Hasakeh (que não é território do ISIS)? Teria o ISIS encorajado os curdos do YPG a tentar expulsar o Exército Árabe Sírio, da base síria em Hasekeh? 

Em todos os casos, o evento parece ter ajudado a cristalizar uma dada convicção – ou a inventar a 'notícia' – de que alguma causa comum estaria sendo construída inexoravelmente: a convicção de que os EUA estavam tentando criar um estado curdo no norte da Síria, onde se poderiam instalar bases militares dos EUA e europeias. E para tal finalidade, os EUA estariam expulsando de Hasekeh o aparato do estado sírio ali existente.

Pareceram confirmados os piores medos da Turquia (de que esse precedente de estado pudesse acabar por desmembrar a própria Turquia, envolvendo na secessão parte considerável do território turco para constituir uma nova entidade curda). 

E também pareceram confirmados os 'piores medos' de russos, iranianos e sírios, de que o 'ocidente' mais uma vez rendia-se à velha perversa ambição de tentar dividir a Síria, além de introduzir uma 'cunha' (curda) pró-ocidente bem no âmago do muito sensível coração de toda aquela região. Moscou foi percorrida pela sensação de que o YPGestivesse embriagado pelas promessas dos EUA de que assim teriam 'seu próprio estado'.

Ora, esse pequeno incidente parece ter tido influência considerável no movimento para reunir estados que, antes, pouco confiavam uns nos outros – e, ainda mais importante, deu a eles uma causa comum. 

Para a Turquia, acabar com o 'projeto' EUA-curdos supera até a animosidade de Ankara contra Damasco. Em vez disso, os dois estados podem ver interesses comuns em lembrar aos curdos alguns dos 'fatos da vida' regionais – ou 'cortar as garras deles', na expressão de um comentarista.

Seja como for, Erdogan e o AKP parecem ter sofrido revezes por conta de sua política para a Síria; e a 'trama' do Curdistão norte-americano serviu-lhes de cobertura útil graças à qual podem pivotear-se elegantemente na direção de restaurarem-se as relações entre Síria e Turquia – e entre Turquia e Rússia, e Turquia e Irã. Assim é que a diplomacia andou em alta rotação nos últimos dias e parece que esse novo ‘grupo de contato’ (Rússia, Síria, Irã, Hizballah e Iraque) caminha na direção de uma resolução para a crise na Síria. (Processo que deixa do lado de fora, ao vento e ao frio, a Arábia Saudita – até aqui.) 

Claro que cautela é absolutamente essencial. Erdogan pode distender-se militarmente bem além do que parece teracertado com o presidente Putin em São Petersburgo: vale dizer, além de uma operação militar estritamente limitada a impedir a presença de curdos na margem ocidental do Rio Eufrates. Não há dúvidas de que os russos fiscalizarão de perto, como falcões, cada movimento dos turcos. É bem possível também que Erdogan super distenda-se também politicamente e ponha-se a exigir mais do que pode obter em termos de uma inclusão de 'rebeldes' em qualquer processo político na Síria. Essas questões são sempre altamente frágeis – e essa ainda mais que outras, porque há grande número de atores fortemente diferenciados entre si.

A questão chave, contudo, que tira o sono de russos e de norte-americanos é saber se a Turquia pretende mesmo manter um pé no campo da OTAN e outro pé no campo russo, ou se estamos assistindo hoje, realmente, à efetiva saída da Turquia, da OTAN – ou se não, nada disso. Erdogan, provavelmente, gosta de manter todos os lados em suspense. Mas uma análise do padrão das expulsões de altos oficiais do exército turco no contragolpe de Erdogan, segundo Metin Gurcin, ex-conselheiro militar turco, sugere que foram expurgados mais atlanticistas e OTANistas, que outros. O exército turco está passando por 'reformatação', rumo a nova orientação, observa Gurcin.

Em todos os casos, a linguagem corporal (se não a retórica) de Erdogan no próximo G20 na China ajudará a avaliar. Não se deve esquecer que no último G20, realizado na Turquia, Erdogan foi menosprezado pela maioria dos participantes ocidentais. Vejamos o que acontece dessa vez. A questão dos refugiados com a União Europeia também chegará às manchetes em breve (Erdogan não tem ajudado muito os europeus, ultimamente). A Síria será tema do príncipe Mohammad bin Salman, que andará pelos bastidores do G20 – sem dúvida testando com ansiedade o campo e a natureza desse suposto movimento de mudança estratégica puxado pela Turquia. 

Mas associada a essa questão há outra: a Ucrânia também é tocada, simultaneamente, pelas mudanças na Síria. E a Turquia é um ponto comum nas duas questões (com os tártaros fazendo a 'ponte', no caso da Crimeia).

Quanto a isso, a reunião do G20 na China será diferente. O presidente Poroshenko não foi convidado –, os chineses não o incluíram (diferente do que se viu em todas as reuniões anteriores do G20), mas Merkel, Hollande e Putin sim, lá estarão e planejam discutir a Ucrânia em reuniões paralelas no mesmo G20. Há sinais de que os europeus estão-se cansando de Kiev (já lamentando as sanções contra a Rússia, que aplicaram em movimento de obediência servil aos EUA). O FMI também se cansou de Kiev. Já alterou datas de desembolsos previstos para Kiev, e ninguém sabe quando (ou se) os desembolsos serão reiniciados. Em resumo, o governo em Kiev pode implodir (ou ser derrubado pelo Setor Direita e grupos fascistas aliados) a qualquer momento.

Essa discussão sobre a Ucrânia – especialmente se tomada simultaneamente com os esforços de mudanças que se veem na Síria – pode modificar a paisagem política: para melhor ou para pior.

Nenhum desses tópicos (relacionamento da Turquia com a OTAN, o conflito sírio ou a Ucrânia) aparece com destaque na agenda do G20 ou são problemas que possam ser resolvidos pelo G20 e podem, no máximo, ser mencionados rapidamente (menção, pode-se dizer, sem importância alguma) no comunicado final. Mas é provável que o G20 lance alguma luz, seja direta seja indiretamente, sobre essas questões complexas, e isso será importante – ainda que não ofereça qualquer decisão substantiva. 

E, adiante, o q os EUA queriam, mas não obtiveram do G20


Para avaliar a extensão do fracasso dos EUA no G20-2016, é importante ler/reler
(1) Pepe Escobar, sobre a reunião do G-20 na China ( traduzido no Blog do Alok); e 
(2) o discurso do presidente Xi Jinping, no encerramento da reunião do G20-2016 (traduzido no Blog do Alok) [NTs]
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Do ponto de vista dos EUA, os objetivos serão demonstrar continuidade da 'liderança' global norte-americana e obter a concordância para uma alteração financeira estratégica no G20 (delineada pelo Tesouro dos EUA e pelo Banco Federal Reserve), contra o ceticismo generalizado e a hostilidade incipiente contra a política do Federal Reserve (e Banco Central) dos EUA. 

A política de taxa negativa de juros [ing. NIRP, Negative Interest Rate Policy (NIRP)] e a política de compra de papéis do Banco Central já estão sendo vistas como bombas de destruição em massa em termos políticos, uma vez que detonam aposentadorias, pensões e serviços sociais e públicos; e como bombas atômicas em termos econômicos, pelo estrago que provocam nos mercados, ajudando a impedir o modelo de negócio dos bancos europeus. E apesar disso os EUA querem ainda maior centralização financeira, num momento em que os humores globais direcionam-se cada vez mais para o rumo oposto: em busca de uma des-globalização das finanças. 

O Fed fala de subir as taxas de juros (embora aumento minúsculo: 25 pontos básicos), mas a China resistirá contra qualquer tentativa de fortalecer o dólar – e provavelmente responderá com desvalorização (o mesmo movimento que pôs em torvelinho os mercados internacionais no início de 2016).

Assim sendo, por mais que políticas financeiras e econômicas talvez apareçam como principal campo de luta no G20 de 2016 na China, lá estará presente, por trás e em todas as entrelinhas, uma questão geoestratégica mais profunda. 

Num discurso na solenidade que marcou os 95 anos de fundação do Partido Comunista da China dia 1º de julho, o presidente Xi observou: "O mundo está à beira de mudanças radicais. Vemos que a União Europeia se vai desintegrando, e a economia dos EUA está em colapso. Isso tudo acabará por fazer surgir uma nova ordem mundial" [leia aqui] (que Xi espera ver já ativada nos próximos 10 anos). 

Para o presidente Xi, as relações entre Rússia e China não se devem limitar a relações meramente econômicas: os dois países devem criar uma aliança militar alternativa: "veem-se hoje as ações agressivas dos EUA contra Rússia e China. Creio firmemente que Rússia e China podem vir a constituir uma aliança frente à qual a OTAN será impotente."

Paradoxalmente (ou não), Zbig Brzezinski, ex-conselheiro para Segurança Nacional dos EUA e arquiteto da doutrina segundo a qual os EUA deveriam estender sua hegemonia por todo o Oriente Médio e Ásia (exposta em seu livro de 1997, The Grand Chessboard: American Primacy e Its Geostrategic Imperatives) mudou completamente de opinião. Agora tende na mesma direção em que caminha o pensamento do presidente Xi da China. É o que se lê em artigo recente de Brzezinski, Toward a Global Realignmentpublicado na revista American Interest.

Agora, Brzezinski prega estratégia diametralmente oposta à de 1997 e fala de os EUA construírem laços com Rússia e China:

"Conforme se encerra sua era de dominação global, os EUA têm de assumir a liderança no realinhamento da arquitetura do poder global. [Dois fatores:] a emergente redistribuição do poder político global e o violento despertar político no Oriente Médio indicam claramente o nascimento de um novo realinhamento global. A primeira constatação inescapável, contudo, é que os EUA ainda são a entidade politicamente, economicamente e militarmente mais poderosa, mas, consideradas complexas mudanças geopolíticas nos equilíbrios regionais, já não são potência globalmente imperial."

É admissão tácita, por Brzezinski, de que os EUA se superdistenderam seja por causa das guerras que fizeram contra países do Oriente Médio seja, ao mesmo tempo, no esforço para impor a Rússia e China uma hegemonia já inexistente. 

Mas o presidente Xi da China aponta mais diretamente para os erros geofinanceiros que EUA e Europa cometeram, como os instrumentos que levaram ao colapso da ordem política e financeira ocidental. Aí, sugere ele, se travarão os combates –, muito mais que na arena política.*****

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